Pop
A DISCOTECA
GUITARRAS
ELÉTRICAS E NEURÓTICAS
Ruído, guitarras elétricas, melodias pop, paranóia urbana. A fórmula
não é nova, mas ninguém como os Sonic Youth conseguiu aplicá-la com tanta
eficácia. O segredo está em saber utilizá-la ao serviço de uma ideia. O novo
álbum, “Goo”, dá a ideia que para a banda de Lee Ranaldo e Thurston Moore o
pesadelo e a loucura não têm fim.
Os Sonic Youth fazem
efetivamente muito barulho. Em decibéis e no esgravatar dos cérebros e das
consciências norte-americanas. São originários, como não podia deixar de ser,
da cidade de Nova Iorque, “fétiche” privilegiado de todas as imagens e
perversões. Encarnações de infinitas fantasias. Sonhos por vezes tornados
pesadelos. A banda de Lee Ranaldo, Thurston Moore, Kim Gordon e Steve Shelley
faz questão em dissecar minuciosamente as taras e os medos de uma América
confrontada consigo própria, no meio de uma crise de abundância e de valores.
Os temas que tratam nunca são cómodos e muito menos inocentes. Ferem, fazem
mossa, inquietam, trazendo para a luz do dia o lado negro e tenebroso do
“American way of life”. A religião, a violência, o sexo e a loucura são alguns
dos seus temas preferidos, abordados exaustivamente ao longo da sua discografia
sempre de uma forma coerente e esteticamente inovadora.
Ruído e Melodia
Desde o álbum de
estreia, “Sonic Youth”, que o som ficou definido – uma torrente ininterrupta de
eletricidade, produzida pelas guitarras de Thurston Moore e Lee Ranaldo,
criando o pano de fundo obsessivo sobre o qual se vão contando as histórias e
delineando as melodias. São notórias algumas influências: Stooges (a voz de
Iggy Pop aparece escondida entre as espiras de “Bad Moon Rising”...), MC5,
Velvet Underground, Hawkwind (alusão óbvia no título “Silver rocket” de
“Daydream Nation” e escute-se com atenção as progressões e linhas de baixo de
“Kool thing” e “My friend Goo”, do novo álbum...) e Glenn Branca são as mais
evidentes. Branca, com quem Moore chegou a tocar as suas sinfonias para
orquestra de guitarras. Dos Velvets aprenderam que o ruído e a distorção nada
valem se não existir o esqueleto que sustenta o caos – a melodia. Simples,
direta, eficaz, construída a partir de uma sucessão imparável de “riffs”
sobrepostos, num caudal sonoro monstruoso e hipnótico. Em termos exclusivamente
sonoros os Sonic Youth, desde o início até “Goo”, têm progredido sobretudo em
termos de apuramento de uma sonoridade cedo bem demarcada. Sem que se tenha
perdido a “acidez” que caracteriza toda a sua música, há, contudo, e a partir
de “Daydream Nation”, a preocupação de domesticar minimamente a fera sonora,
abrindo espaço para estratégias mais subtis. Como aquelas já evidenciadas no
projeto paralelo Ciccone Youth em “The Whitey Album”. Da ilustração sonora do
pesadelo mergulhemos então no seu centro fantasmagórico. No sonho psicótico,
colorido de sangue e humor negro.
Sonhos Invertidos
“I dreamed a dream” era
o título de uma das canções do álbum estreia, que prenunciava esse outro sonho
imenso que é o duplo “Daydream Nation”, repositório exaustivo de alucinações
coletivas e infinitos medos. Desde a imagética das capas à constante referência
aos símbolos (de que são exemplo sintomático aqueles inscritos nos rótulos de
“Daydream”, à semelhança do que fizeram os Led Zeppelin) e a conotações
obscuras com o “voodoo” e outras práticas rituais, todo o universo dos Sonic
Youth é um tratado de fazer inveja a mestre Freud. “Daydream Nation” é o
inverso do sonho americano. Os Sonic Youth praticam o psicadelismo voltado do
avesso.
O amor (tema constante
nas suas canções) é apenas sexo e este doença que se propaga como um vírus
(“Touch me, I’m sick”, “single” dos S.Y./Mudhoney) para utilizarmos a metáfora
do cineasta David Cronenberg, um dos polos de interesse extramusicais,
partilhado pelos membros da banda. Entre o sangue e a morte, elementos
inseparáveis do sexo, o “amor” é sinónimo de violência, o seu inverso – “evol”,
“love” ao contrário, quase Evil, o Diabo, amigo de longa data dos Sonic Youth.
“Confusion is Sex”. Charles Manson é o anti-herói satânico que personifica esta
atitude. A mulher aparece nua nas capas, apenas como um corpo, objeto de assunção
do poder. “Support the power of woman, use the power of man, use the word:
fuck. The word is love” – como se diz em “Bad Moon Rising”. As figuras de Walt
Disney da capa da “Sister”, Cinderella (“Cinderella’s big score” do novo “Goo”)
e mesmo Louise Ciccone, imagens a um tempo cândidas e perversas, em que se revê
grande parte da juventude americana, são monstros camuflados que escondem o
lado oculto por detrás das aparências. A realidade de uma sociedade à beira da
dissolução é a paranóia absoluta. “I’m insane” (de “Bad Moon Rising”),
“Schizophrenia” (de “Goo”) gritam os Sonic Youth, e ao som dos gritos os putos
começam a dançar. Esquizofrenia e ilusão, o real esvaziado de sentido por uma
excessiva acumulação de informação, transforma-se em alucinação vertiginosa.
Mensagens sem emissor nem recetor, circulando no vazio. Informação fantástica e
estereográfica, transmitida via satélite “no dia em que o corpo morre”. A
santidade elétrica. Ruído branco. “Stereo sanctity”, faixa de “Sister”, aludindo
a “Radio free Albemuth”, versão prévia de “Valis”, obra grande de outro dos
heróis dos S.Y., o escritor Philip K. Dick, esquizofrénico genial e assumido.
Mundos dentro de mundos, “All comin’ from human imagination, daydreamin’ days
in a daydream nation”.
O Som da Entropia
A religião é o terceiro
ponto chave da temática dos Sonic Youth. “I got a catholic block” (de
“Sister”). Thurston Moore teve uma educação católica e não sabe o que lhe há-de
fazer. Entre a santidade e o mal (“The good and the bad”, de “Sonic Youth”,
“Cotton crown”, de “Sister”) e a crucificação (“White cross” de “Sister”),
melhor é crucificar sim, mas Sean Penn (“The crucifixion of Sean Penn”, de
“Evol”) e permanecer na tal santidade elétrica, branca e vazia, de “White cross”
– “Stay away another sonic life”. Ou “Sonic Death”? E, mais além, o infinito,
simbolizado graficamente em “Daydream Nation” e materialmente concretizado na
repetição, simulacro demoníaco da eternidade, dos sons aprisionados no final de
“Evol” e em cada espira, nos “instantes de ruído” de “From Here to Infinity” de
Lee Ranaldo.
Para já disponível na
discoteca Contraverso, “Goo” (nome de uma rapariga da cena “punk” de L.A. em
1979 e personagem de um filme de Raymond Pettibon), ironicamente feminista, é
“apenas” o capítulo mais recente dessa eterna viagem pelos confins do pesadelo
americano, repetindo “ad infinitum”, de diferentes e novas maneiras, a face
sempre mutável e ilusória da loucura. Os Sonic Youth continuam apostados em
revelar a essência escura do psicadelismo (mesmo quando se disfarçam de
“rappers” como em “Kool thing”, inspirado em LL Cool J e que conta com a
participação de Chuck D. da Def Jam), disfarçados com as cores e estrelas que
vestem os corpos fotografados e os sons. Astros aparentes, encobrindo buracos
negros que tudo invertem e aspiram. Guitarras elétricas e nervosas. A galáxia
da pop como o lugar mais perigoso do Universo. Implosão sónica. O som da
entropia.
QUARTA-FEIRA, 11 JULHO 1990 VIDEODISCOS